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Nunca é só sobre a comida…

Domingo de manhã e ainda continuo na cama, minha mente começa despertar mais meu corpo e o peso de tudo que estamos vivendo em meio a essa pandemia ainda não me deixa levantar, lembro-me de fragmentos dos meus sonhos e então me recordo do levain que estou cuidando há dias, pronto eu não poderia continuar muito tempo na cama aquele levain precisa de mim.

Me levanto e olho para o pote de vidro aparentemente igual a noite anterior, então percebo a marca no vidro, ufa em algum momento em que eu estava dormindo ele subiu tanto que deixou marcas quase na boca do pote e logo vem uma sensação gostosa de estar no caminho certo. Observação: levain é um fermento natural ou selvagem (gosto dessa palavra) que foi utilizado para fazer pão a milhares de anos e que com toda a industrialização da nossa comida foi se perdendo e que por nossa felicidade guardiãs e guardiões guardaram essa forma de fazer e isso nos possibilita retomá-la quando acordamos para isso.

Minha história com levain começou a pouco dias, mas a minha conexão com pão é de longa data. Ela minha lembra minha avó paterna que faz pães deliciosos e que na época da faculdade fazia uma fornada só para mim e os congelava e tinha pão com gostinho de casa de vó por um bom tempo. Pão também me lembra os cafés da manhã que meu pai fazia, ele os chamava de “pãoscreta” uma variação da bruschetta com pão francês. Noto como essa lembrança agora está aqui num lugar escondido e adormecido, já que as lembranças do meu pai estão me trazendo algo da minha infância e tem impactado na forma como consigo me aproximar da minha família.

Comecei esse texto achando que seria sobre pão, mas nunca é só sobre pão e então quando me questionei sobre o que era surgiu a palavra INCERTEZA. O processo do levain que estava seguindo do blog da Neide Rigo (https://come-se.blogspot.com/2017/02/levain-do-zero-ao-pao-assado.html) leva em média 10 dias e nos primeiros dias simplesmente fazemos uma bolinha de farinha e água e colocamos em xícara com água boa e tampamos até o dia seguinte, a cada dia pegamos essa bolinha ou o que sobrou dela e refazemos e trocamos a água. A motivação de continuar algo por 7 dias que você não sabe onde levará, dia a dia eu conversa com a bolinha desejando que ela pudesse crescer e fizesse pães lindos, pode parecer só uma bolinha, mas para mim não era só isso, era a habilidade de viver cada dia sem a mínima ideia do que viria no próximo


Fazer levain é sobre incertezas, é sobre confiança porque eu não vejo as leveduras mas confio que elas estão lá e que estão crescendo pouco a pouco. É a mesma sensação de quando abro o meu corpo para vivenciar as marcas da infância, algumas pessoas poderiam chamar de traumas, ou mesmo de pais novos que estão aprendendo a força como criar outro ser humano, marcas que fazem lágrimas brotar no meu rosto, lembranças que não corro atrás e sim deixo com que elas cheguem e apenas me permito sentir sem a mínima ideia de aonde essa permissão irá me levar.


As incertezas em alguns momentos são paralisantes para mim e até mesmo fisicamente, a dor da lembrança e do corpo espalham para todos os lados e o que eu posso fazer? A cada dia juntar o que sobrou quando a dor dilacera e refazer a bolinha como o meu levain e acreditar que a atenção e amor estão lá dentro de mim e que aos poucos vão fazer o trabalho de curar.


Driele Quinhoneiro. Da reconstrução da minha bolinha com farinha e água para você.

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